Este artigo apresenta a síntese de uma Mediação Judicial presencial, realizada no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, envolvendo pai e filha em um pedido de exoneração de pensão. No relato não estão presentes informações que possam identificar os personagens reais, para garantir o sigilo necessário.
O Caso
O caso de Mediação aqui abordado refere-se a um pedido de Exoneração de Pensão Alimentícia, pleiteado pelo pai, que ainda pagava alimentos à filha já com 23 anos de idade e que não fazia curso superior.
Início da mediação
No dia e hora agendados, encontrava-me na Casa da Família do Fórum da Leopoldina e, nesse dia, o número de mediações não permitia que eu tivesse a companhia de um comediador. Ao chamar as partes para a Mediação, ainda na área de recepção da Casa da Família, observei ligeira dificuldade do Requerente para se levantar e percebi que a filha estava sentada distante do pai, o que demonstrou o afastamento afetivo existente entre ambos. Cumprimentei-os, apresentei-me e os convidei a acompanhar-me até a sala de mediação. Indiquei-lhes onde deveriam se sentar, colocando-os um ao lado do outro. Não estavam acompanhados por advogados ou defensores.
Dei-lhes boas-vindas e apresentei-me novamente, conferi seus nomes e combinamos de nos tratar a todos pelo primeiro nome, sem maiores cerimônias. Expliquei o procedimento de Mediação, conforme modelo de declaração de abertura padrão, destacando os princípios que regem o procedimento, tais como a voluntariedade e a confidencialidade e pontuei os principais aspectos do papel do mediador e o que se espera das partes ali presentes, quanto ao seu protagonismo, à sua conduta e ao princípio da boa-fé. Terminei minha fala, explicando a flexibilidade do processo e a possibilidade de realização de sessões individuais e, nesse ponto, reforcei os aspectos da confidencialidade dessas sessões também em relação à outra parte. Expliquei que nosso encontro poderia demorar até duas horas e sobre a possibilidade de serem combinadas novas sessões, se necessário, além dos demais detalhes do procedimento. As partes concordaram em prosseguir com a mediação e combinei de ouvirmos primeiro o Sr. João, Requerente do processo, com a concordância da Maria, sua filha.
Relato do Requerente (Sr. João)
O Sr. João foi sucinto em sua fala. Explicou que está pedindo a exoneração da pensão alimentícia que ainda paga a sua filha, Maria, por encontrar-se doente, necessitando de recursos financeiros adicionais para fazer seu tratamento e também porque a filha, já com 23 anos, não está cursando nenhuma faculdade, ao que ele saiba. Comentou que houve dois agendamentos anteriores da mediação, mas que a filha não havia comparecido.
Perguntado se queria acrescentar mais alguma coisa, o Sr. João falou um pouco mais sobre os problemas de saúde que o acometeram no último ano e nomeou alguns medicamentos que toma, esclarecendo sobre o custo dos mesmos.
Relato da Requerida (Maria)
Dada a palavra à Maria, esta demonstrou um sentimento de resignação ao afirmar que não tinha objeções a que o pai cancelasse a pensão, no valor de cerca de R$600,00 que ainda lhe depositava, apesar de estar desempregada e, no momento, esse dinheiro estar ajudando-lhe com as despesas. Conformada, afirmou entender ser um direito do pai deixar de pagar a pensão, pois já tinha 23 anos e, realmente, ainda não cursava nenhuma faculdade, embora fosse esse seu desejo.
Apresentação do Resumo
Como mediador, fiz um resumo da fala das partes, dizendo “Deixem eu ver se entendi corretamente a fala de vocês e me corrijam se eu não tiver entendido alguma questão: Enquanto teve uma saúde estável o Sr. João não se furtou em continuar pagando pensão para sua filha Maria, no valor de cerca de R$600,00, tanto que a manteve até ela completar 23 anos. Por questões de saúde, via-se obrigado a rever esse pagamento, porque não estava conseguindo continuar cuidando de sua saúde, como deveria, razão pela qual estava pedindo a exoneração da pensão alimentícia. Maria, por sua vez, relatou que, no momento, encontrava-se desempregada e que o valor de pensão que recebia ajudava-a nas despesas, mas que entendia ser um direito do pai cancelar a pensão. Afirmou entender a situação dele e manifestou sua concordância com o pedido. Foi isso mesmo? Entendi corretamente?”
O pai confirmou, dizendo que, se pudesse, manteria o pagamento da pensão, mas que estava precisando se cuidar, inclusive com fisioterapia. A filha também concordou com minha fala, acrescentando que, no momento, ficará difícil para ela, pois está terminando um curso de auxiliar de enfermagem e está desempregada há algum tempo, mas que “daria um jeito”.
Reflexão
Naquele momento refleti que, se estivéssemos em uma conciliação, eu poderia encerrar a sessão, já que todos estavam de acordo, e elaborar um termo padrão de exoneração de pensão.
A Mediação, entretanto, pode valer-se de várias ferramentas[1] que permitem o aprofundamento das origens do conflito e de seus impactos sobre a vida das partes. O caucus (sessão individual), por exemplo, por ser confidencial em relação também à outra parte, permite identificar as reais necessidades e interesses de cada um, através do uso de ferramentas que favorecem a reflexão, permitem realizar testes de realidade, oportunizar que um possa se colocar no lugar do outro, além de possibilitar a análise da Melhor Alternativa à Negociação de um Acordo na mediação (MANA), etc.
Com esse propósito, comentei com as partes que estávamos avançando na mediação, já que ambos estavam de acordo com a exoneração da pensão, mas convidei-os a fazermos reuniões individuais para melhor refletirmos sobre as implicações dessa decisão e sugeri começarmos com Maria, pedindo ao João para aguardar na recepção por 15 a 20 minutos, enquanto Maria e eu conversaríamos. Expliquei que, em seguida, dedicaríamos o mesmo tempo numa reunião individual com João. Informei que havia à disposição água e café na recepção e lembrei-lhes que essas sessões individuais são confidenciais também em relação à outra parte, exceto naquilo que for autorizado explicitamente por eles.
Sessão privada com Maria
Após a abertura desta sessão, a filha contou que estava desempregada há vários meses e que só dispõe do valor dessa pensão, cerca de R$600,00, para sobreviver e ajudar a mãe a pagar o aluguel. Disse que está fazendo um curso de auxiliar de enfermagem como forma de ter melhores oportunidades de trabalho e que não vê o pai há mais de 10 anos. Relatou que chegou a ligar algumas vezes para a casa do pai, mas foi sempre atendida pelo outro filho, de idade próxima à sua, ou pela esposa dele, e a trataram muito mal. Desde então, decidiu não mais ligar. Demonstrou tristeza e frustração ao dizer que se ressente muito pelo fato do pai nunca ter sido presente em sua vida. Tem muita mágoa por não ter convivido com ele em sua adolescência e por ele não ter participado das festas de sua escola. Lembra-se que seu pai bebia, o que chegou a presenciar algumas vezes, próximo à comunidade em que morava. Quando saía para a escola o via bebendo em um bar próximo e procurava evitar que ele a visse. Perguntada sobre a confidencialidade, disse que não gostaria que fosse dito ao pai sobre as ligações que fez para a casa dele.
Sessão privada com o Sr. João
Após minhas explicações iniciais sobre a sessão, o pai relatou que, ao longo desses anos, sempre procurou contato com a filha, mas que o número de telefone que ele tinha não pertencia mais a ela. Alegou que ela sabe onde ele mora com sua outra família, mas que nunca o procurou. A filha mora numa comunidade dominada por um grupo (criminoso) rival do que atua na localidade em que ele reside – este fato, segundo ele, o impede de ir até a casa dela; disse que costumava ir até às proximidades da comunidade onde ela morava; deixava recado na farmácia ou no comércio próximo, com os proprietários que a conheciam, pedindo para ela lhe telefonar e permanecia nas proximidades por algum tempo, na esperança de vê-la passar. Atualmente, encontra-se com sérios problemas de saúde, precisando de dinheiro para continuar seu tratamento, não tendo condições de manter o pagamento da pensão. Relatou que, como a filha não compareceu à audiência anterior, ele estava convencido de que ela estava se escondendo, tentando ganhar tempo nesse processo. Ao final da sessão, o pai concordou que tudo o que disse podia ser comentado com ela.
Sessão conjunta final e Conclusão
Após as reuniões individuais, ambos foram convidados para uma reunião conjunta final, no início da qual os enalteci pelos progressos obtidos na identificação das necessidades de ambos e expliquei sobre o que iríamos conversar naquele momento.
Após exporem, um ao outro, seus sentimentos e mágoas abordados no caucus (embora a filha não tenha comentado sobre a forma como foi tratada pela atual família do pai), e terem esclarecido os principais ruídos que prejudicaram a comunicação entre ambos, o pai comentou que, regularmente, ia até a entrada da comunidade dela com a esperança de encontrá-la e se sentava num bar aguardando que ela passasse para ir à escola e, enquanto esperava, pedia uma cerveja para que pudesse ficar ali sentado.
A partir dessa conversa, o pai levou em conta que a filha estava por terminar seu curso de auxiliar de enfermagem e concordou em manter o pagamento da pensão por mais dois meses - até a conclusão do curso; a filha informou o número correto de seu celular ao pai, que combinou de ligar para ela com frequência – a princípio, ela se mostrou cética de que ele o faria, mas demonstrou esperança e desejo de que o fizesse. O pai, que se mostrou uma pessoa com boa qualificação profissional, ofereceu-se em ajudá-la a redigir um bom currículo e a apoiá-la na busca pelo emprego. Disse que iria fazer contato com alguns amigos nesse sentido. Além disso, prontificou-se a continuar ajudando-a, inclusive financeiramente, ressalvadas suas possibilidades atuais decorrentes de uma saúde mais fragilizada.
Despedida
Ao final da mediação nos despedimos, sentindo no ar o florescer da esperança de um futuro melhor para a filha e do desejo de ambos de resgatar uma relação interrompida por questões mal compreendidas no passado. Saíram juntos.
Mas aí já estava na hora de voltar à recepção para encontrar as partes de uma outra família ...
Autor: Nelson Soares de Rezende
Mestre em Engenharia de Sistemas e Computação e Mediador de Conflitos desde 2015. Mediador Judicial Sênior, certificado pelo TJRJ. Mediador Privado, qualificado pelo CBMA, e certificado pelo ICFML, atuando em câmaras privadas no Rio de Janeiro e São Paulo e em plataformas de ODR.
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[1] ALMEIDA, T. Caixa de Ferramentas em Mediação – Aportes práticos e teóricos. São Paulo: Dasheditora, 2014.